Uma das portas de entrada para a imagistica pagã da cultura europeia é a genealogia dos Deorum Gentilium (Genealogia dos Deuses do Paganismo), monumental levantamento das tradições mitológicas da antiguidade feito por Giovanni Boccaccio em 1350 – que se constituirá numa das mais ricas fontes de inspiração para os roteiros e cenários dos precursores da ópera. Nela já está claro, o fascínio pela idéia platônica de que a arte, ao revelar a realidade, o faz pela metade, pois continua ocultando significados mais profundos que estão abaixo da superfície das coisas. Assim como o pano que encobre uma estátua esconde os detalhes de sua forma, mas sugere os seus contornos, a obra de arte pode ao mesmo tempo ser externamente perceptível e desfrutável e internamente enigmática e sugestiva.
As idéias introduzidas pelo neoplatonismo vão se enraizar fundamente na consciência europeia no século XVI. Na época em que a ópera surgiu, a genealogia de Boccaccio ainda era amplamente consultada pelos artistas em busca de alegorias pagas que servissem de veículos para suas idéias.
Onde Platao falava de padrões ideais de forma existentes no ceu, dotados de uma perfeição que a nossa experiência terrestre não pode atingir, Carl Jung falava de arquétipos soterrados em nosso inconsciente, responsáveis por nossas predisposições a determinados padrões de comportamento tanto psicológico quanto fisiológico. A nossa intuição sobre essas verdades secretas transparece, coletivamente, nos temas recorrentes dos mitos e das lendas e, individualmente, nos nossos sonhos e fantasias que, de certa forma, estão relacionados com esses temas recorrentes. As divindades, os heróis, as ninfas e pastores, os sátiros, centauros e sereias que povoavam a arte renascentista são, na realidade, chaves para o entendimento da verdade sobre nós mesmos. As formas dessas personificações fantásticas são as de nossos impulsos mais profundos projetados em imagens mitológicas para que encaremos como se os estivéssemos contemplando através de um vitral que o estilizasse. Foi essa teoria da arte que, em suas origens, impregnou a ópera, cujos primeiros libretistas eram fiéis seguidores dos ideais propostos por Ronsard.